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Fora do Baralho

Pensar Diferente, Ver Diferente = Pensamento Livre

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29.03.23

As intrépidas comunas de Paris.


Barroca

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No final da década de 1860, Paris foi modernizada por ordem de Napoleão III, que queria que a capital fosse um paraíso para a nobreza. Já para o povo, a miséria e a fome aumentam, gerando um descontentamento tão acentuado que o imperador tenta desviar a raiva social contra um inimigo externo: a Prússia. A guerra é um fiasco, Napoleão III acaba na prisão, a cidade acaba sitiada, o Império desmorona. Embora o povo se oponha à rendição, o governo provisório francês - liderado por Adolphe Thiers - concorda com um armistício e exige que os milicianos entreguem suas armas. É nesse contexto que ele envia soldados para retirar 271 canhões estacionados no morro de um bairro operário, Montmartre, em 18 de março de 1871.

 

Acontece ao amanhecer, quando o sol ainda não nasceu, e são as mulheres que “a caminho de comprar pão e leite para suas famílias” entram em cena: os irmãos parisienses se preparando para retirar furtivamente a artilharia, e elas, com grande coragem, interpõem-se entre os homens e os canhões que "apontavam para a cidade do luxo e dos palácios, das conspirações monárquicas, dos especuladores infames e dos governos covardes", nas palavras do jornalista, romancista e revolucionário André Léo, nom de plume de Léodile Champseix, autor de várias obras sobre igualdade de direitos. Mesmo quando as tropas recebem a ordem de abrir fogo, as mulheres não se retiram; ainda mais, convencem os soldados a apontarem seus fuzis para seus generais, o que acaba sendo o estopim de um momento revolucionário histórico: a Comuna de Paris, cujo início tem 152 anos.

 

A utopia dessa experiência radical de democracia direta durou, como se sabe, por muito pouco tempo: mal passaram 72 dias em que milhares de pessoas se apresentaram para participar da defesa de seu projeto, um governo operário e popular, secular e socialista, que teve um fim brutal, sufocado pelo exército de Versalhes na chamada Semana Sangrenta. Enquanto resistia, no entanto, a Comuna de Paris promoveu uma série de medidas políticas e sociais avançadas, embora “por razões óbvias” muitas não tenham sido implementadas nessas datas. Seu programa incluía: educação gratuita, laica e obrigatória; requisição de casas vazias para abrigar pessoas sem abrigo; eliminação dos juros das dívidas; remuneração igual para homens e mulheres; autogestão de fábricas abandonadas; proibição do trabalho noturno em padarias; criação de creches para filhos de trabalhadoras; supressão da distinção entre mulheres casadas e concubinas; abertura de instituições de elite “como a Biblioteca Nacional e o Louvre” ao público em geral; vereadores eleitos por votação em cargos que, além de revogáveis, não podiam ser remunerados com salários superiores à média do proletariado...

 

Apesar de suas ações corajosas, durante muito tempo a mulher foi pouco reconhecida como tendo um papel pouco menos que acessório, limitando a figura heroica a Louise Michel, educadora e escritora anarquista que entraria para a história como uma ave rara que vestiu o uniforme da milícia, e defendeu a causa das barricadas, travando batalha perseverante.

 

Da mesma forma, prevaleceu a caricatura das “pétroleuses”, termo pejorativo que designava supostos incendiários delirantes, acusados de incendiar Paris para vingar seus camaradas massacrados; um esquadrão que... nunca existiu: mito antigo, serviu para demonizar e mascarar a verdadeira participação feminina na Comuna, de vital importância para a revolta. "Os olhos vermelhos, a pele gretada, o cabelo desgrenhado, os lábios enegrecidos e escoriados, apresentavam um conjunto de feiúra repulsiva": assim descreveu um abade Hortense Aurore Machu, condenado a trabalhos forçados perpétuos por ter participado num incêndio Tuileries; acusação carente de provas; não tanto a coragem dos referidos, hábeis e intrépidos com a espingarda segundo as crónicas da época.

 

A verdade é que as mulheres lutaram para serem acolhidas nos batalhões, aos quais assistiam primeiro oferecendo provisões e como assistentes médicas, quando não recarregavam as armas dos seus compatriotas. Dos muitos testemunhos que sobreviveram, destaca-se a correspondência da ambulância Alix Payen à sua família, descrevendo o árduo dia a dia de um batalhão. A cantineira Victorine Brocher também contou de perto como foram aqueles dias em Les souvenirs d'une morte vivante, biografia que publicou em 1909, aos 71 anos, relembrando o despertar de seu compromisso político.

 

Tenazes e altamente comprometidas, em muitos casos conseguiram ser admitidas nas fileiras; a famosa barricada na Place Blanche, por exemplo, era mantida por “pelo menos” uma centena de communardes. Mas além de se inscrever na linha de fogo, as milícias criaram comités de vigilância e apoio; também oficinas em cada distrito. A maior e mais eficaz organização durante a revolta, sem ir mais longe, foi a sua obra: a Union des femmes pour la défense de Paris que, desde a sua criação, postulou que a luta pela defesa da Comuna era a luta pelos direitos das mulheres.

 

Por outro lado, fizeram-se ouvir em clubes políticos “tanto mistos como femininos” mostrando suas habilidades como oradoras eloquentes, afirmando-se na arena pública. Paule Minck, os já citados André Léo, Jeanne Deroin, Nathalie Lemel, Béatrice Excoffon, Sophie Poirier, Anna Jaclard, entre as palestrantes que costumam se destacar, embora também houvesse lavadeiras, padeiras, parteiras, costureiras que trocavam ideias em dias de acalorados debates no que se falou sobre como reorganizar o trabalho, dar acesso à educação, entre outras conquistas a serem alcançadas.